Discos históricos: O Canto Livre de Nara, de Nara Leão (1965)
Terceiro álbum de estúdio da cantora aprofunda escolhas musicais dos discos anteriores
“Não conheço qualquer proibição contra uma moça de Copacabana cantar samba de morro. Entendo essa música, gosto dela e não tenho culpa de ser da zona sul”, disse Nara Leão (1942-1989), ao ser perguntada pela enésima vez sobre como era para uma mulher rica como ela cantar músicas compostas por sambistas moradores das favelas cariocas e desconhecidos do grande público.
“O fato é que não quero me limitar a nenhum gênero de música, bossa nova ou bossa velha. Quero cantar o que esteja de acordo com a minha maneira de pensar e de sentir. Posso mudar de novo, quem sabe? Há um mundo a descobrir”, completou.
Era 1965 e havia um ano que o Brasil estava vivendo sob o nefasto regime militar e a situação, ruim em todos os aspectos, estava piorando e iria piorar ainda mais pelos anos seguintes. Mas a cantora, imparável e imponente, seguia firme e enfrentando qualquer um. Depois do lançamento do álbum de estreia, “Nara” (1964), ela abriu de vez as asas, cortou fora a timidez inicial e dobrou a aposta em “Opinião de Nara” (1964), um LP cheio de músicas de protesto, baseado no espetáculo “Opinião”, em que dá chance a novos compositores, revisita o passado e começa a explorar a música regional. Foi um sucesso de público e crítica.
Com o trabalho com os diretores do cinema novo e com os artistas ligados ao Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE), Nara entendeu rapidamente a arte como algo parte da sociedade e agente transformador da vida das pessoas, principalmente na transmissão de mensagens. Assim, ela foi vista como um símbolo de resistência, considerada um perigo para os militares e passou por vigilância quase constante — ela deixaria o Brasil por alguns anos ao final da década.
No mesmo ano, ainda carregando a boa repercussão do espetáculo, precisou deixá-lo por problemas na voz e indicou Maria Bethânia para substituí-la. E, ao contrário do imaginado por qualquer um, Nara aproveitou o período sem compromissos para viajar pelo Brasil e se aprofundar nos costumes e na música de diversos locais. Ao retornar, encampa um novo espetáculo: “Liberdade, Liberdade”.
Com texto de Millôr Fernandes (1923-2012) e Flavio Rangel (1934-1988), ela atuava ao lado de atores Paulo Autran (1922-2007) e Tereza Rachel (1934-2016) em uma peça que apresentava um compilado de textos sobre o assunto do título, desafiando os militares mais uma vez. Foi com todo esse sucesso nos ombros e mais experiente, que ela entrou em estúdio para gravar o terceiro disco da carreira.
Assim como fez na estreia, a cantora pediu ajuda a velhos conhecidos, como Zé Keti (1921-1999), Carlos Lyra (1933-2023), Dorival Caymmi (1914-2008) e Vinicius de Moraes (1913-1980), a artistas novos, como Edu Lobo, e recorreu a músicas que conheceu nas andanças pelo Nordeste. Muito menos tímida, ela sabia que precisava de força para cantar tais letras, sempre muito potentes e com algum significado profundo para quem as escreveu. E sabia que precisava melhorar musicalmente, então, como tantos outros daquela geração, foi aluna de Moacir Santos (1926-2006).
Ao escolher o nome do LP como “O Canto Livre de Nara”, ela deixava claro o posicionamento pessoal e político: jamais seria doutrinada para cantar qualquer coisa imposta pela gravadora ou por qualquer um. Ela era livre em tudo, incluindo fazer um disco ainda mais engajado do que os anteriores ao criticar o status quo, apoiador ferrenho da ditadura desde os primeiros minutos do golpe contra o presidente eleito João Goulart. E se o texto do primeiro álbum foi assinado peplo produtor Aloysio de Oliveira (1914-1995), o novo trabalho contou com as palavras do escritor Ferreira Gullar (1930-2016).
“Este segundo disco de Nara é um passo adiante no caminho que ela propôs ao lançar seu LP anterior, intitulado ‘Opinião’. Caminho que propôs a si e aos demais cantores, como aos compositores e adeptos da música popular brasileira. Esse caminho, que ela segue conscientemente, acrescenta à sua função de cantora a de intérprete dos problemas e das aspirações de seu povo. Nara quer levar, na sua voz livre, ao maior número possível de pessoas, uma compreensão atual da realidade brasileira, que ela sente e identifica nas composições de um Caymmi, de um João do Vale, de um Zé Keti, de um Edu Lobo, de um Vinícius e de tantos outros”, escreveu.
“Nara não vê limite para a sua atuação de cantora. Não se prende a preconceitos nem a formalismos. Ela quer se comunicar do modo mais franco e mais direto, cantando e discutindo, dialogando com o público. O show “Opinião” – em que ela atuou com Zé Keti e João do Vale e que foi o último grande sucesso da temporada teatral no Rio – não teve por acaso o mesmo título do seu LP anterior: o show foi fruto desse mesmo movimento de nossa música popular, que se amplia para se expressar os sentimentos coletivos. “Mais que nunca, é preciso cantar”. Cantar o amor e a vida, o amor que é de todos como a vida. Cantar a solidariedade, a paz e a liberdade. Nara descobriu que é possível e que é preciso tornar realidade a ideia de que todos os homens são iguais, e que, como cantora, ela pode contribuir para isso. E Nara contribui para isso tanto quando canta o sofrimento do lavrador sem terra, como quando interpreta um velho samba de amor. Pois, ao aproximar esses temas aparentemente tão distantes, ela nos ensina, com a sabedoria de sua mocidade, que amor, paz, trabalho e liberdade são sinônimos de vida”, completou.
Uma vez, o ex-jogador e colunista Tostão disse: “o craque vê; o gênio antevê”. A cantora anteviu vários craques da música brasileira, jogou luz em outros nomes desconhecidos e explorou ao máximo a amplitude da música feita no Brasil, rica, bela, diversa e cheia de ótimos compositores. “O Canto Livre de Nara” encerrou uma espécie de primeiro ciclo, quando acabou sendo contratada pela TV Record, ao lado de Edu Lobo, Alaíde Costa, Claudette Soares, Orlando Silva e Baden Powell, para estrelar um programa musical. Naquele momento, ninguém parava Nara Leão — nem mesmo os militares.
Crítica de “O Canto Livre de Nara”
Nome de um dos integrantes do bando de Lampião, “Corisco” abre o terceiro álbum de Nara Leão e, pelo teor da letra composta pelo cineasta Glauber Rocha e músico Sérgio Ricardo, acaba sendo um desafio à ditadura militar logo de cara (“Eu não me entrego não/ Eu não sou passarinho pra viver lá na prisão/ Não me entrego a tenente/ Nem a capitão/ Só me entrego na morte/ De parabelo na mão”).
Depois, a cantora explora o samba de Zé Keti e Carlos Lyra chamado “Samba da Legalidade”, uma ode ao gênero e um recado: dentro da legalidade, ninguém pode pará-la. Impressiona a naturalidade com que ela canta a música, como se ela realmente fosse parte do morro. O repertório passa por “Não Me Diga Adeus”, faixa que transita entre a balada romântica e o desespero do abandono, e “Uricuri”, quando ela explora o cancioneiro nordestino e as histórias do sertão.
A emocionante “Canto Livre” funciona perfeitamente porque Nara a trata como um grande desabafo sobre o cantar e o desespero por não conseguir, tudo que a letra exige dessa potente interpretação, mas é na triste “Suíte dos Pescadores”, composta por Dorival Caymmi, que podemos ouvir a força vocal dela — os tempos de teatro ajudaram e muito na projeção da voz, necessária para dar a dramaticidade em uma música longa e fora dos padrões da época.
Conhecida na potente interpretação de Maria Bethânia tempos depois, “Carcará” foi gravada primeiro por Nara Leão nesse álbum, mas já era parte do repertório do show “Opinião”. E a cantora retorna ao samba na biográfica “Malvadeza Durão”, que trata do assassinato de um conhecido no morro (“Mais um malandro fechou o paletó/ Eu tive dó, eu tive dó/ Quatro velas acesas em cima de uma mesa/ E uma subscrição para ser enterrado”).
A melancólica “Aleluia” é mais uma a tratar dos sacrifícios para conseguir o pão de cada dia, enquanto “Nega Dina” traz a malandragem no centro do assunto e trata uma situação do cotidiano em tom de comédia (“A minha vida não é mole, não/ Entro em cana toda hora sem apelação/ Eu já ando assustado e sem paradeiro/ Sou um marginal brasileiro”). Na delicada “Minha Namorada”, Nara Leão é acompanhada pelo piano nessa balada romântica que ganha corpo à medida que avança e o LP encerra com a religião ganhando espaço em “Incelença”, em uma história profundamente brasileira.
“O Canto Livre de Nara” mostrou como a cantora sabia muito bem o que queria para si e, cada vez mais, se sentia livre para fazer essas escolhas. Ao escolher essas músicas, o repertório se desenhou como um recado claro a todos os críticos: ela valorizava a música brasileira de qualquer época, caso fosse de qualidade. Cinquenta anos após o lançamento, o LP ainda é um marco importante de uma carreira fundamental para entender o Brasil que nos foi tomado pelos anos de chumbo.
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Ficha técnica
Tracklist:
Lado A
1 - “Corisco” (Glauber Rocha/ Sérgio Ricardo)
2 - “Samba da Legalidade” (Zé Keti/ Carlos Lyra)
3 - “Não Me Diga Adeus” (Paquito/ L. Soberano/ J. C. Silva)
4 - “Uricuri” (José Cândido/ João do Vale)
5 - “Canto Livre” (Bené Nunes/ Dulce Nunes)
6 - “Suíte dos Pescadores” (Dorival Caymmi)
Lado B
1 - “Carcará” (José Cândido/ João do Vale)
2 - “Malvadeza Durão” (Zé Keti)
3 - “Aleluia” (Ruy Guerra/ Edu Lobo)
4 - “Nega Dina” (Zé Keti)
5 - “Minha Namorada” (Carlos Lyra/ Vinicius de Moraes)
6 - “Incelença” (Folclore)
Gravadora: Philips
Produção: Armando Pittigliani
Duração: 34 minutos
Estúdio: -
Nara Leão: vocal
Luiz Eça: piano e direção musical
Dori Caymmi: violão e coordenador de gravação
Bebeto: baixo e flauta
Ruben Ohana de Miranda: bateria
Ohana: bateria
Peter e seu naipe de cordas: cordas
Sylvio Rabello: engenheiro de som
Célio Martins: técnico de gravação
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