Discos históricos: A Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares (2015)
Álbum produzido por Guilherme Kastrup é considerado um dos melhores da cantora
Se existiu no Brasil uma mulher com coragem, essa mulher foi Elza Soares. E se existiu uma mulher que saiu das piores condições possíveis para uma brasileira sobreviver, ela também cumpriu esse papel com maestria até o último minuto de vida, encerrada em 20 de janeiro de 2022, anos 91 anos. A cantora cantou praticamente até o último momento e sempre relembrava de como foi difícil chegar ali.
Faxineira, empacotadora e doméstica, casou-se aos 12 anos e foi mãe pela primeira vez aos 13. Talentosa desde sempre, só apostou na música no desespero: quando um dos filhos estava com pneumonia e, sem dinheiro para comprar remédios, se inscreveu no programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso, na Rádio Tupi. Ao ser vista com roupas improvisadas, muito maiores para o corpo jovem e muito magro, foi perguntada pelo apresentador: “De que planeta você veio?”.
“Do planeta fome”, respondeu.
Vencedora do concurso, perdeu dois filhos e o primeiro marido no período em que estava deixando a adolescência e entrando na fase adulta, quando passou a viver de música. A partir disso, com ajuda de Aloysio de Oliveira, produtor da Odeon, gravou discos, fez sucesso, teve um relacionamento conturbado, violento e vigiado pela imprensa com Garrincha por 17 anos, perdeu contratos, desfez e refez a carreira várias vezes, enfrentou dificuldades e equilibrou tudo com shows e ajuda dos amigos.
“Sempre gostei de cantar, desde pequenininha. Ser cantora na época era uma coisa pejorativa. Meu pai queria que eu estudasse muito, que não falasse em ser cantora”, disse, em entrevista para BBC News, em 2018.
No ano 2000, foi eleita a “Melhor Cantora do Milênio” pela BBC e a carreira ensaiou um retorno com coisas aqui e ali, como o álbum “Do Cóccix Até o Pescoço”, de 2002, e ao cantar o hino do Brasil na abertura dos Jogos Pan-Americanos de 2007. Mas foi só nos anos 2010 que ela começou a ter mais atenção de uma nova geração de fãs e músicos, que mostravam admiração não apenas pela dramática história de vida, mas pelo repertório acumulado ao longo dos anos. Inegavelmente, ela era uma das grandes que quase ninguém prestava atenção. Nada foi fácil, principalmente para uma pessoa não renunciar quem sempre foi.
“A minha vida já é uma vida de repressão, uma vida dura, de ‘meu Deus, e agora, que que eu faço? Meu Deus, cadê você, pra onde vou?’. Entendeu? Como eu posso criar filhos tão menina? Como eu posso ter uma mãe tão sofrida? Minha vida é feminina, feminista. Já nasci nisso. Me botaram nesse país, num Brasil que é o país mais preconceituoso do mundo”, falou, em entrevista para Vice, em 2018.
Um artista pode ter muitas fases em uma única vida, algo difícil de acontecer por uma série de fatores que só o destino pode explicar. No caso de Elza, talvez nem o destino tem uma resposta para o que aconteceu ao conhecer o produtor Guilherme Kastrup, um dos grandes nomes da geração da música feita em São Paulo nos anos 2000, para fazer um novo álbum. A ideia inicial era fazer um disco de regravações de sambas, mas um amigo sugeriu que, ao conseguir dinheiro via edital, por que não inscrever um trabalho original com canções inéditas?
Kastrup entrou em ação e convidou vários amigos para apresentar músicas para a cantora, um misto de homenagem a uma grande carreira com pautas importantes e defendidas por ela desde sempre. Ao ouvir o repertório, viu que precisaria trabalhar mais do que nunca para conseguir dar o melhor de si para entregar um grande disco.
“O álbum tinha o colchão do samba, tudo foi montado a partir daí. Tudo era samba no princípio, mas foi sendo destrinchado em outros formatos. Tudo composto pra Elza, falando da vida da Elza, que é um exemplo do que é a brasilidade, um exemplo do povo brasileiro que pode superar todas as dificuldades a partir da potência que é a sua arte”, revelou ele, em entrevista ao programa Bem Viver, do Brasil de Fato, em 2023.
Com ajuda de Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Rômulo Fróes, Thiago França, Douglas Germano, Thomas Rohrer, Celso Sim, Rodrigo Campos, DJ Marco e do grupo Bixiga 70, ela entrou em estúdio com a força de sempre para mostrar que só não está vivo quem já se foi.
“Acredito que foi o encontro com essa meninada muito talentosa. Esse grupo de paulistanos da nova cena da música brasileira que vem fazendo já há algum tempo um trabalho inovador.. Cara, achei a minha praia... (risos)”, contou, ao Correio Braziliense, ao ser perguntada sobre o disco “A Mulher do Fim do Mundo”.
Lançado em 3 de outubro de 2015 e elogiado no mundo todo, “A Mulher do Fim do Mundo” apresentou Elza Soares a uma nova geração de fãs, que passou a lotar as apresentações dela pelo Brasil. Mesmo sentada nos shows, ela mostrava imponência de quem tinha o completo domínio dos acontecimentos naquele momento. E provava ao mundo que ninguém cala uma voz com tanta potência e com tanto para falar.
Crítica de “A Mulher do Fim do Mundo”
Poema de Oswald de Andrade (1890-1954) e musicado por José Miguel Wisnik, “Coração do Mar” abre “A Mulher do Fim do Mundo” de maneira surpreendente até hoje com o grande acerto ao explorar a voz crua e nua de Elza Soares, uma abertura profundamente comovente e um pequeno ensaio do que vem pela frente.
A homenagem feita para cantora por Rômulo Fróes e Alice Coutinho na faixa-título enaltece a força feminina, colocando a cantora como um exemplo a ser seguido por outras e um recado de que seguir não é apenas uma opção, mas algo muito maior (“Eu quero cantar até o fim/ Me deixem cantar até o fim/ Até o fim eu vou cantar/ Eu vou cantar até o fim/ Eu sou mulher do fim do mundo/ Eu vou, eu vou cantar, me deixem cantar até o fim/ Até o fim eu vou cantar, eu quero cantar/ Eu quero é cantar eu vou cantar até o fim/ Eu vou cantar me deixem cantar até o fim”).
Se a música que leva o nome do disco foi um sucesso, “Maria da Vila Matilde” foi uma explosão. Direta e reta sobre violência doméstica, algo passado pela própria cantora em várias relações, a canção explora os ritmos de então nova geração de músicos paulistanos que gostam de misturar várias coisas — cuíca com sintetizador, por exemplo. Não é só uma ótima letra, mas um recado a todas as mulheres para não abaixar a cabeça para nenhum homem.
A temática trágica do trabalho se expande em “Luz Vermelha” e “Benedita”, quando o cotidiano é retratado de maneira verdadeira, sempre com samba como base para exploração dos outros instrumentos. Logo depois, “Pra Fuder” é pura energia do corpo, do sexo e dos sentimentos (“Me derreto tonta/ Toda pele vai arder/ O meu peito em chamas/ Solta a fera pra correr”).
Com arranjos do Bexiga 70 e DJ Marco no scratch, “Firmeza?!” traz uma parceria competente com Rodrigo Campos em uma faixa leve sobre amizade, enquanto “Dança” traz uma personagem principal já morta e, apesar disso, ainda insiste em dançar em um samba leve — uma metáfora muito poderosa da própria vida de Elza, muitas vezes dada com a carreira acabada. E o tema do viver e morrer segue forte “O Canal”, uma reflexão sobre nossos limites e quão perdidos podemos ficar quando não temos um rumo.
O clima pesa nos arranjos e na letra de “Solto”, uma espécie de poema musicado que só a cantora, com toda vivência e delicadeza, poderia dar esse tom dramático e necessário em uma interpretação cheia de melancolia e beleza. E poderosa letra de “Comigo” encerra o álbum de maneira muito comovente (“Levo minha mãe comigo/ Pois deu-me seu próprio ser”).
“A Mulher do Fim do Mundo” abriu caminho para Elza Soares ser, enfim, reconhecida por mais gente como uma das melhores intérpretes do Brasil. Com um repertório feito sob medida e com assuntos tratados por ela ao longo de toda uma vida, o disco é um dos melhores lançados na última década, sendo merecedor da imortalidade.
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Ficha técnica
Tracklist*:
1 - “Coração do Mar” (Oswald de Andrade/ José Miguel Wisnik) (1:27)
2 - “Mulher do Fim do Mundo” (Rômulo Fróes/ Alice Coutinho) (4:37)
3 - “Maria da Vila Matilde” (Douglas Germano) (3:44)
4 - “Luz Vermelha” (Kiko Dinucci/ Clima) (4:31)
5 - “Pra Fuder” (Kiko Dinucci) (3:56)
6 - “Firmeza?!” (part. de Rodrigo Campos) (Rodrigo Campos) (3:32)
7 - “Benedita” (part. de Celso Sim) (Celso Sim/ Joana Barossi/ Fernanda Diamant) (5:05)
8 - “Dança” (Cacá Machado/ Rômulo Fróes) (3:34)
9 - “O Canal” (Rodrigo Campos) (3:07)
10 - “Solto” (Marcelo Cabral/ Clima) (3:41)
11 - “Comigo” (Rômulo Fróes/ Alberto Tassinari) (2:17)
*existem versões diferentes da lista de músicas em que “Benedita” e “Firmeza?!” estão invertidas. Aqui, segui a ordem do álbum no Apple Music
Gravadora: Circus/ Natura Musical
Produção: Guilherme Kastrup
Duração: 39 minutos
Estúdio: Red Bull Studios (São Paulo)
Elza Soares: vocal
Celso Sim: vocal
Rodrigo Campos: vocal
Aramís Rocha: violino
Cuca Ferreira: flauta e saxofone barítono
Daniel Gralha: trompete
Daniel Nogueira: saxofone tenor
Deni Rocha: cello
Douglas Antunes: trombone
DJ Marco: captador
Edmur Mello: viola
Edy Trombone: trombone
Felipe Roseno: percussão
Guilherme Kastrup: bateria e percussão; gravação
Kiko Dinucci: guitarra elétrica e repique de mão e violão
Marcelo Cabral: baixo, sintetizador e violão de sete cordas
Robson Rocha: violino
Rodrigo Campos: cavaco e guitarra elétrica
Thiago França: sax barítono e saxofone tenor
Thomas Rohrer: rabeca
Sidmar Vieira: trompete
Rodrigo “Funai” Costa: gravação
Marcelo Guerreiro: assistente de gravação
Anderson Trindade Barros: gravação e produção
Arthur Luna Beccaris: assistente de gravação e produção
Victor Rice: mixagem
Felipe Tichauer: masterização
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