Discos históricos: Usuário, do Planet Hemp (1995)
Álbum de estreia do grupo chegou com um forte posicionamento político
“É uma merda, parece que estamos na época da ditadura. Fico pensando o que pode levar o ser humano a fazer essas paradas. Toda essa celeuma por causa de um punhadinho de mato”, disse BNegão, para Folha de S. Paulo, ao ser perguntado sobre a prisão de um organizador de um show do Planet Hemp em Vitória, no Espírito Santo, e o cancelamento de outro em Salvador por conta de uma liminar expedida pela 1ª Vara Privativa de Tóxicos da Bahia, em 1996.
A banda formada por Marcelo D2, BNegão, Rafael Crespo, Formigão, Bacalhau e DJ Rodrigues enfrentava problemas com a justiça, com a polícia e com políticos críticos ao primeiro disco de estúdio, com letras explicitas sobre o uso da maconha e cheias de protestos pró-liberação. Como muitos brasileiros nascidos na periferia nos últimos dois séculos, tudo jogava contra eles: falta de emprego e falta de perspectiva. Mas, como muitos iguais a eles, a música surgiu como uma salvação para, ao menos por algumas horas, fugir da dura realidade.
O início se deu a partir da amizade de Skunk com D2, que se conheceram quando o segundo vendia camisetas e usava uma do Dead Kennedys na hora. Foi quase amor à primeira vista, afinal, o quão difícil era achar um camelô fã de punk e hardcore? Eles começaram a falar de música e não pararam mais. Skunk era da cena há muitos anos, sempre organizando coisas para os outros e para si, enquanto Marcelo escrevia o próprio material sonhando em viver de música.
Mas havia um empecilho: eles não tocavam nenhum instrumento, então partiram para o rap, que não precisa de muita coisa a não ser caneta e papel. Foi assim que o guitarrista Rafael, o baixista Formigão e o baterista Bacalhau, conhecidos de Skunk, chegaram e toparam fazer um ensaio. A coisa fluiu de um jeito que logo estavam fazendo shows e chamando atenção de todos. Era algo fresco aqui no Brasil, essa a mistura de rap com rock, já aclamada pelo som e fúria do Rage Against the Machine nos Estados Unidos.
Em dois anos, o Planet Hemp chamou tanto a atenção que conseguir fazer shows em São Paulo naquele jeito: no maior sufoco e com todo mundo feliz pela chance em cantar e começar uma inimaginável carreira na música — se não havia caminho, eles trataram de abrir um à força. Em uma época pré-internet, as gravadoras mandavam pessoas aos lugares para descobrir novos talentos e havia um burburinho com a primeira demo do Planet Hemp, um nome um tanto ousado e uma pequena mostra da posição deles no mund. Porém, uma tragédia quase colocou fim ao sonho de gravar o primeiro disco.
Skunk convivia há anos com HIV e se dedicou ao máximo para fazer o Planer Hemp acontecer, inclusive pediu demissão do emprego para se dedicar ao máximo ao projeto. Infelizmente, em 8 de julho de 1994, ele morreu em consequência da doença e deixou um vácuo enorme pessoal e musicalmente falando. “A gente nem gosta de falar nisso. Ele era quase meu irmão. A banda quase acabou na época. A gente não conseguia pensar em nada”, disse BNegão, entrevista à 'Folhateen, às vésperas do lançamento do primeiro disco da carreira.
“Não dá para falar nisso sem ter vontade de chorar. Esse disco é em homenagem a ele. O Skunk era nosso amigo, era um cara cheio de vida. É bom deixar isso claro: ele morreu porque transou sem camisinha. Que sirva de lição. Gente, não transe sem camisinha!”, completou D2.
BNegão, substituto de Skunk em vários shows, foi efetivado como segundo vocalista e, apesar da tragédia, o sonho seguiu firme e forte. Então, veio uma espécie de leilão por vários grupos novos surgidos nos últimos anos. Em São Paulo, uma iniciativa capitaneada por parte dos Titãs virou o Banguela Records, um selo com Carlos Eduardo Miranda na (louca) direção e produção musical. Eles pegaram Raimundos e Mundo Livre S/A; a Sony foi esperta e angariou Chico Science e toda Nação Zumbi. E o Planet Hemp? No documentário “Sem Dentes – Banguela Records e a Turma de 1994”, dirigido pelo jornalista Ricardo Alexandre, Miranda contou como ele ajudou o grupo a sair de uma fria.
“Ela [a produtora Elza Cohen, que tentava fazer no Rio de Janeiro algo parecido com o Banguela] ia fazer uma coletânea. Ela fazia isso na raça, igual a todos nós... Quando eu soube que aquela coletânea era um contrato de quatro músicas, dois compactos simples, por cinco anos, que ia travar Planet Hemp, O Rappa, o Kongo, Jorge Cabeleira... Eu falei: ‘nem fodendo, veio!’. Liguei pra Elza e falei: ‘ô Elza, isso aí que você tá fazendo é uma cagada. Tu tá fazendo um pau de sebo disfarçado, tão te usando, e isso aí eu não vou permitir que aconteça. Não é hora de ter uma coletânea dessa travando esses artistas importantes para o mercado por cinco anos’. Daí eu falei: ‘quer saber o seguinte, confia em mim. Eu vou botar pra foder pra cima de ti. Vou ligar pro [André] Forastieri [editor da Ilustrada, caderno da Folha de S. Paulo, à época] e nós vamos te arregaçar no mercado. Mas vai ser pro bem”, explicou, lembrando de como o Banguela nasceu primeiro na imprensa para depois ter um CNPJ.
“Liguei pras bandas: ‘Não assina essa porra’. Liguei pro empresário do Planet Hemp e falei: ‘tô te mandando um contrato pra tu esfregar na cara dos caras lá na Sony’. Eu falei pra ele: ‘olha, esse contrato é frio. Eu não vou te contratar, porque não dá para os Titãs contratar o Planet Hemp. Porque se pegarem vocês com maconha, e fomos nós soltarmos vocês, vão nos prender junto. Vocês têm que estar numa gravadora com uns caras de gravata pra soltar vocês, não os loucos. Então, eu não quero encrenca, não vou contratar o Planet Hemp’. E foi o que a gente fez”, continuou.
“E nessa brigaiada toda, não sei quem era lá na Sony, deu uma pernada nos caras lá. Mandou os dois à merda e foi fazer ele o negócio. ‘Vamos fazer um selo e escolhe duas bandas [disse para Cohen]’. O Jorge Cabeleira foi afobado e já tinha assinado o contrato [...]. Daí [depois disso tudo] virou um selo [Chaos] com essas duas contratações [Cabeleira e Planet Hemp]”. O Planet Hemp assinou um ótimo primeiro contrato profissional em uma grande aventura envolvendo toda uma cena musical em ebulição no Brasil naquele momento.
Apesar da história cômica da contratação, os diretores da Sony estavam com um pé atrás. Afinal, os shows tinham um tom político muito forte e com o Brasil saindo da ditadura há apenas uma década, muitos setores da sociedade não gostaram. Foi assim que eles, inexperientes em gravações e com essa expectativa toda do público e da crítica, entraram em estúdio.
O Planet Hemp queria Edu K, vocalista do DeFalla, como produtor, mas não deu certo. Miranda também recusou pelo trabalho no Banguela. A gravadora queria um produtor mais experiente e levou um não — eles ficaram com receio de o profissional não os entender e acabar prejudicando as músicas. No fim, aconselhados por Marcelo Yuka, do Rappa, acabaram eles mesmos produzindo o álbum com auxílio do engenheiro de som Fábio Henriques, fundamental não só para fazer as vontades do grupo na gravação, como segurar a bronca dos diretores da Sony. Em entrevista para revista Noize, em 2010, o ex-guitarrista do grupo Rafael Crespo falou um pouco mais sobre a gravação de “Usuário”.
“A ideia era soar o mais cru possível, como se fosse um show. Sempre fomos uma banda de show, nossos shows eram legais, essa era nossa experiência de tocar: ao vivo. Acabou não ficando exatamente assim, mas pra gravar um disco era um trabalho difícil. Hoje eu escuto o disco e vejo que realmente têm coisas que deixaram a desejar por falta de experiência nossa mesmo. Mas, por exemplo, na guitarra, usei todos os timbres que quis; fiquei horas pesquisando, acho que essa parte até ficou boa. Mas tem outras coisas que podíamos ter dado uma atenção maior e acabamos não dando, enfim, mas no primeiro disco acho que isso faz parte”, falou.
Pode parecer piada, mas “Usuário” foi lançado em 1º de abril de 1995 e atendeu as expectativas de todos os envolvidos. Dos então jovens, havia orgulho em gravar as músicas e homenagear o amigo Skunk; da gravadora, que viu o trabalho ganhar Disco de Ouro; e da imprensa, que produziu várias matérias sobre eles falando muito de maconha e pouco de música. A estreia mostrava força, união, um repertório acima da média e era cheio de coragem. E quem tem coragem para algo desse nível no Brasil, nunca pode ser desprezado.
Crítica de “Usuário”
Não existe como dourar a pílula, então, sim, “Usuário” é um disco sobre maconha, uso de maconha e liberação da maconha. Ok? Ok. Mas o álbum também traz discussões importantes nas 17 músicas em quase uma hora de duração, algo normal na época da chegada dos CDs com tudo no mercado brasileiro — existia um ‘boom’ no consumo pelo fato de o real e o dólar se equipararem e pelo controle da inflação iniciado no fim do governo de Itamar Franco e seguido no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Como Marcelo D2 disse uma vez, o Planet Hemp é um grupo de rock com letras de rap — com samples espertos para completar o combo. E militantes do uso consciente da maconha, eles começam o disco com “Não Compre, Plante!”, um manifesto pela liberação que também fala da realidade da vida das pessoas nas favelas. Uma das discussões importantes é da violência policial em “Porcos Fardados”, de letra muito pesada (“Invadem, invadem, invadem/ Invadem sua casa sem um mandado oficial/ Levam o pouco que você tem te chamam de marginal/ Faça um favor pra humanidade, pow, pow, policial/ Os porcos fingem querer te ajudar/ Mas se você ficar de costas eles vão te matar/ Não tem integridade, são uns covardes matam sem piedade”).
Um dos grandes sucessos da história do Planet Hemp e uma das melhores músicas brasileiras das últimas três décadas, “Legalize Já” é um grito pela legalização com bons argumentos, principalmente para acabar com a violência do Estado em cima de quem usa, com a guitarra como um dos destaques da potente letra (“Legalize já, legalize já/ Porque uma erva natural não pode te prejudicar”). Então, chega a sequência formada por “Deisdazseis”, “Phunky Buddha”, “Mary Jane” e “Fazendo a Cabeça”, canções que ajudam a entender não apenas o que eles defendem como cidadãos com voz, mas como eles optaram por fazer isso: com música. Do rap ao rock, passando pelo punk e o hardcore, essa sequência mostra como eles apareceram no momento certo.
Depois dos sucessos do álbum, a melhor é “Futuro do País”. Por um lado, é lamentável que, 30 anos depois, a música seguir atual é um retrato de como melhoramos muito pouco com relação a um passado não tão distante. Pelo outro, eles estavam tão afiados, principalmente ao colocar uma pitada de samba, que só deixa tudo ainda melhor (“Pra poder comer eles te pedem dinheiro na rua/ Você vira as costas/ E diz que a culpa não é sua/ Esse é o futuro do país/ Você pisa neles hoje amanhã é a sua vida que está por um triz”). E falando em sucesso, “Mantenha o Respeito” é um clássico incontestável e é outra a ressoar até hoje nos sons dos carros pelas ruas das periferias pelo Brasil.
Infelizmente, o trabalho tem um problema: “P... Disfarçada” é uma música ruim, rancorosa, machista, cheia de preconceito e não merece aparecer nas apresentações em nenhum momento. Colocando tudo nos eixos mais uma vez, “Speed Funk”, “Muthafuckin' Racists” e “Dig Dig Dig (Hempa)” é outra sequência de músicas que mostram a força, velocidade e criatividade de um grupo que, de forma rara, conseguiu liberdade no estúdio para gravar.
A instrumental “Skunk” homenageia o amigo que se foi e “A Culpa é de Quem?” aborda o clima ruim da época, que ainda refletia o impeachment de Fernando Collor de Melo ocorrido apenas três anos antes, culpando os políticos pela situação de atraso do país (“Se o pobre começa a pensar/ Parece que incomoda alguém/ Crianças crescem nas ruas, não confiam em ninguém/ Escondem nossa cultura, referência ninguém tem/ O país está uma merda e a culpa é de quem?”). E “Bala Perdida” encerra o álbum com outra situação que nunca melhorou, e traz uma banda furiosa para falar com muita clareza do assunto.
A estreia do Planet Hemp é uma pancada atrás da outra e quase não há fôlego para respirar entre uma música e outra. Cheios da coragem que só a juventude traz, eles mostraram uma parcela da sociedade então desprezada pela elite e completamente sem voz. Querendo ou não, as coisas mudaram um pouco quando eles começaram a ser ouvidos. “Usuário” foi um marco e merece ser celebrado.
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Ficha técnica
Tracklist*:
1 - “Não Compre, Plante!” (Marcelo D2/ Rafael Crespo) (4:12)
2 - “Porcos Fardados” [Música Incidental: “Bicho Feroz”] (D2/ Crespo) (3:06)
3 - “Legalize Já” [Música Incidental: “Legalize It”] (D2/ Crespo) (3:01)
4 - “Deisdazseis” (D2/ Black Alien) (0:48)
5 - “Phunky Buddha” (D2/ Crespo) (2:50)
6 - “Mary Jane” (D2/ Crespo) (2:10)
7 - “Planet Hemp” (Crespo) (0:32)
8 - “Fazendo a Cabeça” (D2/ Crespo/ Formigão/ Bacalhau) (3:20)
9 - “Futuro do País” (D2/ Crespo) (3:39)
10 - “Mantenha o Respeito” (D2/ Crespo) (3:16)
11 - “P... Disfarçada” [Música Incidental: “Repelente”] (D2/ Crespo) (2:26)
12 - “Speed Funk” (Crespo/ Bacalhau/ Speed Freaks) (1:23)
13 - “Muthafuckin' Racists” (D2/ Alien/ Crespo) (3:44)
14 - “Dig Dig Dig (Hempa)” (D2/ Crespo/ Formigão/ Bacalhau) (1:53)
15 - “Skunk” (Crespo) (3:35)
16 - “A Culpa é de Quem?” (D2/ Crespo) (3:48)
17 - “Bala Perdida” (D2/ Crespo/ Formigão/ BNegão) (2:33)
*O álbum tem uma faixa instrumental oculta no final
Gravadora: Chaos (Sony)
Produção: Fábio Henriques & Planet Hemp
Duração: 48 minutos
Estúdio: Discover (Rio de Janeiro)
Marcelo D2: vocal
BNegão: vocal; guitarra (faixa 17)
Rafael Crespo: guitarra; bateria (faixa 17)
Formigão: baixo
Bacalhau: bateria
DJ Rodrigues: turntables
Marcos Suzano: percussão (faixas 1, 3 e 12)
Marcelo Lobato: teclados (faixas 1, 14 e 15)
Chico Neves: programação (faixas 2, 9 e 16)
Black Alien: vocal (faixas 4 e 13); vocal de apoio (faixas 7 e 10)
Speed Freaks: baixo (faixas 12 e 15)
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Bom final de semana a todos!
Belíssimo texto, amigo. À altura de um discaço, saudade do D2 roqueiro (nada contra o sambista, porém).
Quanto ao contexto de ainda parecer uma obra atual, mais uma confirmação do triste ditado de que o Brasil é um país com um grande passado pela frente.