Discos históricos: LCD Soundsystem, do LCD Soundsystem (2005)
Os problemas pessoais foram os combustíveis de James Murphy para as músicas da estreia em estúdio
No início dos anos 2000, todo mundo acima dos 25 anos parecia meio cansado. As expectativas geradas pela queda do Muro de Berlim não se concretizaram e uma parte considerável da geração do chamado “Mundo Livre” tinha o potencial desperdiçado, estava em subempregos ou não conseguia avançar na vida por uma série de fatores. Mas para quem estava iniciando a adolescência, o século XXI parecia um farol brilhante que atraia todo mundo. Afinal, o futuro era uma folha em branco e pronta para ser preenchida com sonhos e desejos em uma era pré-Facebook, pré-iPhone, com o Orkut bombando e duas décadas antes da corrosão da democracia pelo mundo.
Para os cansados e sonhadores, ouvir a música preferida e dançá-la até a exaustão em inferninhos com cheiro de cerveja e suor era um meio de colocar para fora toda energia da expectativa e a raiva da frustração. E, talvez, não tenha um grupo que uniu todas essas pessoas nas pistas de dança pelo mundo como foi o LCD Soundsystem. Naquela época, “Daft Punk Is Playing at My House” e “Losing My Edge” eram hits quase obrigatórios em algum momento, colocando o lugar abaixo não literalmente.
Se é para falar do LCD Soundsystem, é impossível não falar de James Murphy. Perto dos 30 anos, ele havia se tornado um DJ requisitado por ter inúmeras referências: da pulsante música nova-iorquina de várias décadas até eletrônico alemão obscuro encontrados após horas e horas passadas em sebos locais. Como muitos da geração, ele estava cansado e não via boas perspectivas para o próprio futuro. Ele não era um estranho no meio, mas pouco se via como alguém da galera. E ficar no limbo é a pior coisa para qualquer pessoa, não importando nacionalidade, credo ou time de futebol. O propósito de vida chegou ao fundar, em 2001, o selo DFA ao lado do amigo Tim Goldsworthy e do sócio Jonathan Galkin com um objetivo: mudar o status quo das festas de Nova York com uma programação musical única para atrair todo jovem esquisito, nerd, gay, drag queens e muitos outros que estavam isolados em seus próprios mundos.
O encontro com Goldsworthy foi um momento definidor na carreira e na vida de Murphy ao trabalhar com ele em “Bow Down To The Exit Sign”, de David Holmes, lançado em 2000. Foi em uma noite com Holmes como DJ que ele experimentou ecstasy pela primeira vez. “Eu estava dançando e estava feliz e tive uma revelação: este sou eu de verdade. Depois daquele momento, eu dançava conforme o que me importava”, contou ele em depoimento presente no livro “Meet Me In The Bathroom”, sobre a cena de bandas independentes surgidas naquela época.
Como um pequeno selo localizado em uma das maiores metrópoles do mundo, o DFA tinha a arrogância do Rob, a cretinice de Barry e a delicadeza de Dick, todos personagens do filme “Alta Fidelidade”, dirigido por Stephen Frears e estrelado por John Cusack. Era uma mistura de missão pessoal pelo amor à música e vontade de esfregar na cara de cada um que eles eram melhores. E nada como escolher o The Rapture, grupo em ascensão na cena que capturava bem o estilo dance-punk em voga naquela época, para começar. “Echoes”, lançado em 8 de setembro de 2003, foi um sucesso inesperado e colocou a banda no estrelato ao ser carimbado por praticamente toda publicação musical, tornando eles e os produtores as pessoas mais famosas do mundo. Foi quando a EMI ofereceu um acordo de distribuição e marketing. Era o topo para um ferrado como Murphy. Mas, como você pode imaginar, a coisa azedou.
Quando o vocalista Luke Jenner criticou a mixagem e reclamou de como a guitarra ficou no disco, a resposta de Murphy foi seca: “não vamos mexer nisso”. Furioso, ao invés de ir com o DFA para EMI, ele e os companheiros preferiram ir para Universal pela bagatela de US$ 1,8 milhão. Murphy ficou furioso. Dormindo no escritório por não ter onde morar pelos três anos seguintes, lidando com a perda recente dos pais e recém-separado da namorada, ele se sentia sozinho. Foi o golpe definitivo para terminar série de músicas em que estava mexendo durante as madrugadas após o trabalho com o Rapture. Era o nascimento definitivo do LCD Soundsystem.
“James estava trabalhando silenciosamente em coisas, mas quando as coisas entre nós e o DFA se desgastaram, acho que o LCD subiu na lista em termos de prioridade. Se entrarmos em uma grande briga com o DFA teve um bom resultado, foi talvez fazer com que James prestasse mais atenção ao LCD Soundsystem”, disse Mattie Safer, em entrevista ao “The Independent”.
Em julho de 2002, Murphy deu ao mundo um gostinho do grupo ao lançar “Losing My Edge”, música inspirada pela péssima situação pessoal e ao ver outros DJs imitá-lo. Foi a primeira de muitas declarações sobre si em que usava Nova York como pano de fundo, algo que conquistou os fãs e o fez subir na escada da fama ao ressoar profundamente nas pessoas. Era o início de uma mudança profunda que não demoraria a dominar o mainstream pelos anos seguintes.
“Quando eu era DJ, tocando Can, Liquid Liquid, ESG, todo esse tipo de coisa, me tornei meio descolado por um momento, o que era uma anomalia total. E quando eu ouvia outros DJs tocando música similar eu ficava tipo: ‘Porra! Estou sem emprego! Esses são meus discos!’ Mas era como se alguém tivesse entrado no meu cérebro e dito todas essas palavras que eu odeio. Então, comecei a ficar horrorizado com minha própria atitude. Mas tive esse momento de glória”, disse, em entrevista ao blog “I Really Love Music”, em 2005.
“As pessoas me usavam como DJ só para deixá-las legais. Elas ficavam, tipo, ‘É o cara legal do rock disco’, e isso era muito estranho. E para ser honesto, estava com medo de que essa nova frieza fosse embora e é daí que vem ‘Losing My Edge’. É sobre ficar horrorizado com minha própria tolice. E então se tornou uma coisa mais ampla sobre pessoas que se apegam às criações de outras pessoas como se fossem suas. Há muito pathos nesse personagem, porque ele nasce da inadequação e do amor”.
Murphy decidiu trabalhar duro no álbum de estreia do LCD Soundsystem, deixando Goldsworthy ainda mais furioso. O amigo e sócio não gostou de “Losing My Edge” e se recusou a participar do início gravação do álbum de estreia. Reza a lenda que, por conta disso, Murphy aprendeu a fazer tudo sozinho no estúdio em três semanas e a música só estava finalizada quando ele dizia ser o suficiente em uma mistura de pura arrogância com “eu tenho conhecimento suficiente para fazer isso, apesar de ser um novato com mais de 30 anos”. Enquanto isso, a banda, que também contava com Nancy Whang, Pat Mahoney, Tyler Pope, Al Doyle, Matt Thornley e Korey Richey, conquistava o público com apresentações insanas e cheias de energia.
Lançado em 24 de janeiro de 2005, o álbum de estreia do LCD Soundsystem abriu caminho para uma nova era para dançar, unindo punk, revolta de uma geração e esperança de outra. Sucesso na Europa, no Reino Unido e na parada de música eletrônica da “Billboard”, Murphy colocava o cinismo pessoal nos principais lugares do mundo e iniciou o processo de ascensão da cultura alternativa com outros artistas no mesmo período. Definitivamente foi um antes e depois.
Crítica de “LCD Soundsystem”
Um dia, James Murphy teve a ideia de convidar o Daft Punk para tocar na casa dele e, com uma câmera na mão e alguns convidados, faria uma espécie de documentário sobre esse momento épico. Claro, isso nunca aconteceu, mas acabou se tornando a letra de “Daft Punk Is Playing at My House”, um dos grandes sucessos do álbum de estreia do LCD Soundsystem em uma mistura de sons, gêneros musicais e muita vontade de sair dançando por aí (“Well, Daft Punk is playing at my house, my house/ I'll show you the ropes kid, show you the ropes/ I got a bus and a trailer at my house, my house/ I'll show you the ropes kid, show you the ropes/ I bought fifteen cases for my house, my house/ All the furniture is in the garage/ Well, Daft Punk is playing at my house, my house/ You got to set them up kid, set them up”).
Após a abertura pungente com o baixo pulsante e cheia de energia, Murphy abre o leque de referências. Começando por “Too Much Love”, faixa que deve ter deixado David Byrne orgulhoso pela influência exercida pelo Talking Heads, assim como o New Order deve gostar do neto gerado em “Tribulations” — inspirada nos momentos de dificuldade de Murphy no estúdio com o Rapture e na vida pessoal. E a crítica ao chamado “novo rock” chega pesada em “Movement”, quando usa todo cinismo e ironia possíveis para falar de bandas e da imprensa de maneira geral de maneira muito habilidosa (“It's like a movement from the small place/ To a bigger city/ Or it's a bigger bag to strap the ego of a little baby/ It's like a discipline without the discipline of/ All of the discipline/ It's like a culture/ Without the effort of all of the culture”). Aqui, fica claro o diferencial: não era apenas uma banda que usava elementos eletrônicos em canções para dançar. Eles também sabiam usar o básico do rock para agitar o máximo possível.
O romantismo (ou a falta de) surge na balada melancólica “Never as Tired as When I'm Waking Up”, que lembra “Dear Prudence”, dos Beatles, em ser algo fora da curva em um disco cheio de coisas mais interessantes. Mas acaba chamando a atenção justamente por isso, ao mostrar esse lado de Murphy pouco conhecido. E a vida noturna, tão bem conhecida por todos os integrantes, é retratada na deliciosa e bem sacada “On Repeat”. O lado experimental surge em “Thrills”, passa pela rima de “Disco Infiltrator” e encerra com “Great Release”, a maior homenagem possível de Murphy e de toda uma geração que adora música eletrônica a Brian Eno.
O segundo disco começa com outro clássico: “Losing My Edge”, o relato honesto de quem se sentia a parte do sucesso, sabia do falava e do que tocava nas apresentações, mas era egoísta a ponto de se achar dono dessas músicas. Ele prova isso, nesse misto de arrogância com experiência de vida, falando o nome de cada artista ao trazer uma história bem pessoal, abraçada por parte público que se sentia como ele (“Yeah, I'm losing my edge/ I'm losing my edge/ The kids are coming up from behind/ I'm losing my edge/ I'm losing my edge to the kids from France and from London/ But I was there”).
E se na primeira parte Murphy celebra a noite, “Beat Connection” coloca o pessoal para dançar e lembra dos pontos mais baixos do final da balada ao terminar a noite sozinho, meio fora de si e precisando de ajuda para ir embora — são quase quatro minutos e meio até alguém abrir a boca. O lado punk surge na agitada e veloz “Give It Up”, com Murphy e a banda acelerando o máximo possível e “Tired” parte para homenagear os anos 1960 e 1970 ao lembrar um tantinho o início do Black Sabbath da Era Ozzy misturado com psicodelia e uma viagem de ácido sem precisar usar a droga.
Os mais de 20 minutos de “Yeah”, divididos em duas partes, homenageiam toda história da disco music, passando pelos anos 1980 até chegar no eletrônico da década seguinte. Apelando para repetição, o LCD Soundsystem coloca toda experiência para jogo em um grande conjunto contagiante e com uma energia juvenil que só quem não tem nada a perder pode apresentar ao mundo. E o encerramento fica com “Yr City's a Sucker”, a primeira de muitas vezes em que Nova York seria exaltada em um álbum do grupo.
Ouvir o LCD Soundsystem é ser transportado a uma época de muitas alegrias e lágrimas, com a adolescência chegando ao fim e a vida cobrando passos definidores de quem ainda não era maduro o suficiente. Enquanto esse momento não era o presente, James Murphy foi uma espécie de porta-voz de pessoas que queriam desabafar e, como alguém que demorou a chegar no topo, entendia perfeitamente essas cobranças vindas de pessoas que davam sinais de exaustão em muitas lições desnecessárias sobre como viver. “LCD Soundsystem” não foi apenas um sopro de vida, mas um vento que guiou vários barquinhos para mais diversão até a chegada das responsabilidades.
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Ficha técnica
Tracklist:
Disco 1
1 - “Daft Punk Is Playing at My House” (5:16)
2 - “Too Much Love” (5:42)
3 - “Tribulations” (4:59)
4 - “Movement” (3:04)
5 - “Never as Tired as When I'm Waking Up” (4:49)
6 - “On Repeat” (8:01)
7 - “Thrills” (3:42)
8 - “Disco Infiltrator” (4:56)
9 - “Great Release” (6:35)
Disco 2
1 - “Losing My Edge” (7:51)
2 - “Beat Connection” (Murphy/ Tim Goldsworthy) (8:08)
3 - “Give It Up” (3:55)
4 - “Tired” (Murphy/ Pat Mahoney) (3:34)
5 - “Yeah” (Crass version) (Murphy/ Goldsworthy) (9:21)
6 - “Yeah” (Pretentious version) (Murphy/ Goldsworthy) (11:06)
7 - “Yr City's a Sucker” (Full version) (9:22)
Gravadora: DFA/ Capitol (EUA) e EMI (resto do mundo)
Produção: The DFA (James Murphy e Tim Goldsworthy)
Duração: 47 minutos (versão simples); 100 minutos (disco duplo)
Estúdio: Long View Farm e Plantain Recording House (Estados Unidos)
James Murphy: um pouco de tudo no estúdio e direção de arte e design
Tim Goldsworthy, Eric Broucek, Tyler Pope, Nancy Whang, Patrick Mahoney e Mandy Coon: um pouco de tudo no estúdio
The DFA e Andy Wallace: mixagem
Alan Douches: masterização
Eric Broucek: assistência
Ian Hatton, Mike Lapierre, Steve Sisco, Josh Wilbur e John O'Mahony: engenheiro de som e programador assistente
Michael Vadino: direção de arte e design
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