Crítica: Mdou Moctar - Tears of Injustice
Álbum traz versões acústicas de “Funeral for Justice”, lançado em 2024
“Queríamos fazer uma versão separada de ‘Funeral’ para as pessoas ouvirem. Estamos sempre brincando com arranjos em shows. Queríamos provar que poderíamos fazer isso em um disco também. E há todo outro lado da banda que surge quando tocamos um set simplificado. Torna-se algo novo”, explicou o produtor da banda nos EUA, Mikey Coltun, em nota divulgada pela gravadora Matador para o lançamento de “Tears of Injustice”, oitavo álbum de estúdio do guitarrista Mdou Moctar.
Diferentemente dos trabalhos anteriores, o novo disco não traz músicas inéditas, mas versões acústicas de “Funeral for Justice”, lançado há pouco menos de um ano. A ideia surgiu em 2023, quando Ahmoudou Madassane e Souleymane Ibrahim foram impedidos de retornar ao Níger, país natal dos integrantes, por conta de um golpe militar que depôs o então presidente Mohamed Bazoum - foi a quinta vez que um presidente eleito foi deposto pelos militares em pouco mais de 60 anos de independência do país. Exilado em Nova York, o grupo, que já debatia a ideia de lançar o projeto, enxergou na urgência dos acontecimentos o momento ideal para colocar a mão na massa e (re)gravar as músicas.
Se a versão elétrica acentua as canções de protesto contra a situação no país e no continente todo, “Tears of Injustice” muda o tom ao se fiar no sofrimento das pessoas com esses acontecimentos. Quando a democracia é substituída abruptamente por uma ditadura militar, todo mundo está em perigo porque qualquer passo pode ser literalmente fatal. Mdou Moctar tem um grande talento para contar histórias e deixa claro em “Funeral for Justice”, quando a dor ganha espaço com o uso do violão no lugar da guitarra e da percussão no lugar da bateria.
O destaque do trabalho não está nas músicas em si, afinal é o mesmo repertório do anterior, mas em como tudo foi gravado. Desta vez, a opção foi deixar a coisa fluir para extrair o máximo de sentimento da interpretação do vocal e dos instrumentos. Por exemplo, “Imouhar” tem três minutos e meio a mais do que a versão original por conta dessa importante decisão de Coltun no estúdio. Só regravar as músicas não era o suficiente; era necessário algo a mais para mostrar a mudança de sentimento de um trabalho para o outro, deixando tudo mais melancólico.
O clima de ritual religioso ganha outro tom na sequência formada por “Takoba” e “Sousoume Tamacheq”, duas canções que ganham muito na versão acústica por conta do uso da percussão, elemento fundamental das raízes africanas. É difícil não se emocionar ouvindo, ainda que não dê para entender nada - Moctar canta em tuareg, língua de 4 milhões de pessoas de tradição nômade que moram no norte do continente africano. E o violão é o grande protagonista de “Imajighen”, uma dessas músicas que mostra uma banda mais entrosada do que nunca.
Outro destaque do álbum é o uso do djembe, instrumento de percussão de som grave e vibrante. Sabe como grupos de R&B usam o baixo para encorpar a sonoridade em algo muito específico, mas extremamente reconhecível? É o caso do djembe, que transforma “Tchinta” em uma canção deliciosa. A política é abordada em “Oh France”, uma crítica ao fato de o país europeu ainda ser dominante no Níger quase 70 anos após a independência e pouco ligar quando acontece um golpe de estado, e em “Modern Slaves”, outra pancada melancólica sobre os tempos atuais.
Caso não haja uma pedra no coração, é impossível não se sentir tocado pela reconstrução do repertório em “Tears of Injustice”. Mdou Moctar está cada vez mais consolidado como um dos grandes nomes da música africana moderna, ao lado de Bombino (Níger) e do grupo Tinariwen (Mali). Com canções biográficas sobre os tempos atuais, não há dúvida que o disco força o olhar para o continente fora do noticiário e nos faz pensar como parte do mundo insiste em não sair do século XX.
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Tracklist:
1 - “Funeral for Justice (Injustice Version)”
2 - “Imouhar (Injustice Version)”
3 - “Takoba (Injustice Version)”
4 - “Sousoume Tamacheq (Injustice Version)”
5 - “Imajighen (Injustice Version)”
6 - “Tchinta (Injustice Version)”
7 - “Oh France (Injustice Version)”
8 - “Modern Slaves (Injustice Version)”
Avaliação: ótimo
Gravadora: Matador
Produção: Michael Coltun
Duração: 39 minutos
Mdou Moctar: guitarra e vocal
Mikey Coltun: baixo, guitarra, percussão e vocal de apoio
Souleymane Ibrahim: bateria, djembe e vocal de apoio
Ahmoudou Madassane: guitarra e vocal de apoio
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