Discos históricos: Help!, dos Beatles (1965)
O fim da primeira fase da banda trouxe o início de mudanças fundamentais no futuro
Os Beatles estavam crescendo, pessoal e musicalmente, quando o ano de 1965 começou. Para o quarteto formado por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, aquele período especifico marcou um ponto de virada fundamental na relação entre eles dentro e fora do estúdio. Apresentados a maconha por Bob Dylan em agosto do ano anterior, eles estavam usando um pouco além da conta, como muitos relatos posteriores afirmaram.
“Fumamos maconha no café da manhã naquela época. Ninguém conseguia se comunicar conosco porque era só olhares vidrados e risadinhas o tempo todo. No nosso próprio mundo”, disse Lennon, em entrevista publicada no livro “All We Are Saying”, de David Sheff. E seria só o começo, porque, ainda em 1965, Lennon e Harrison experimentariam LSD pela primeira vez e iniciaram o processo de alteração de consciência que os levariam a explorar outras coisas futuramente.
Mas as composições da banda ainda não seriam alteradas por essas mudanças, apesar de os trabalhos para um novo álbum de estúdio, o sucessor de “Beatles for Sale”, começarem por conta da confirmação de mais um filme estrelado por eles. O sucesso de “A Hard Day's Night” (“Os Reis do Iê, Iê, Iê” no Brasil), considerado inovador e importante para o cinema jovem da época, fez outro longa ser planejado quase imediatamente. Para economizar tempo e explorar ao máximo o material, o próximo trabalho em estúdio seria a trilha sonora oficial. Até um nome provisório já havia: “Eight Arms to Hold You”, uma das muitas frases ditas por Starr em algum momento durante uma brincadeira. Posteriormente, o longa se chamaria “Help!”.
Nesse meio tempo, Starr casou com Maurine Cox e disse a quem quisesse ouvir que queria sossegar, enquanto Paul e John trabalhavam no repertório do novo LP. Pela primeira vez, a colaboração entre os dois começava a ganhar outros ares, com cada um escrevendo as próprias letras e arranjos no papel – apenas a faixa-título do filme e “You're Going to Lose That Girl” foram compostas como nos velhos tempos não tão distantes assim. A influência da música pop batia cada vez mais forte, com os Beach Boys e Dylan funcionando como importantes fontes de inspiração para novas composições. Começava ali uma espécie desafio interno para superar os “concorrentes” em músicas cada vez melhores e mais elaboradas. Isso só aumentaria nos discos seguintes.
O novo trabalho também foi o primeiro de muitos em que Lennon usou a música para fazer um profundo desabafo sobre si e a vida que estava levando. Nos primeiros anos, ser uma celebridade cheia de fama e poder o deixou exibido e confiante, mas ele começou a definhar quando outros ganharam espaço. Starr foi alçado a ser o mais querido entre o público após o lançamento do filme “Help!”, um trabalho nonsense, de roteiro improvisado, com atores chapados e de menor qualidade do que o anterior. Ringo, amante de filmes desde os tempos em que ficou trancado em casa na adolescência por um ano devido à tuberculose, se salvou ao mostrar confiança e atuar muito melhor do que os outros. Foi suficiente para cartazes com “I Love You Ringo” aparecerem com mais frequência nas apresentações e nas portas dos hotéis.
Outro a ganhar espaço foi McCartney, considerado bonito e elogiado por quase toda garota. E a sensação de isolamento só piorava nas coletivas, quando ele tomava à frente dos companheiros para falar sobre a banda, como um porta-voz e líder. Lennon, acima do peso, inseguro com as próprias composições e míope, sentia estar ficando atrás do resto. Mas, na época de composição da música título do filme, ele simplesmente colocou no papel coisas que estava sentindo, sem saber muito bem o que era.
“Quando ‘Help!’ foi lançada, eu estava, na verdade, clamando por socorro. A maioria das pessoas acha que é apenas uma música rápida de rock 'n' roll. Eu não percebi na época, simplesmente compus a música porque fui contratado para compô-la para o filme. Mas depois, eu soube que realmente estava clamando por socorro. Então foi o meu período de Elvis gordo. Veja o filme: ele (eu) é muito gordo, muito inseguro e se perdeu completamente. E eu estou cantando sobre quando eu era muito mais jovem e tudo o mais, relembrando como era fácil”, contou, também ao livro de Sheff.
“Help!” foi um disco um pouco mais complicado de fazer do que os anteriores pela gama de compromissos que eles tinham. Além de escrever as músicas, eles precisaram sair para gravar o filme, se apresentar em programas de TV e rádio e tocar ao vivo para milhares de pessoas algumas vezes por semanas. Era exaustivo. Vida social? Não existia. Foram 12 dias não consecutivos de gravações em um método de trabalho diferente. Ao invés de pegar a música e gravar vários takes até ficar satisfeito, o quarteto passou a gravar a parte instrumental básica primeiro, depois colocar overdubs com vários outros instrumentos extras e vocais de apoio e, por último, o vocal principal. Cada música era gravada em uma ou duas tentativas no máximo, mas o dia no estúdio era longo por conta dessa mudança feita em como lidar com cada parte do material.
Em 15 de fevereiro, eles gravaram “Ticket To Ride”, “Another Girl” e “I Need You” e só voltariam ao estúdio novamente em períodos picados. Primeiro no final de março, depois em meados de abril e maio. Por fim, a última quinzena de junho eles completaram as músicas para a trilha sonora do filme. O resto do disco fica para depois. A produção também trouxe novidades nos instrumentos, com Starr usando mais instrumentos de percussão nas músicas, McCartney tocando guitarra mais vezes e Harrison usando pedais diferentes. O teclado e o violão de 12 cordas foram outros elementos inseridos nas músicas que não estavam presentes anteriormente. Outra novidade foi a presença de Johnnie Scott na gravação de “You’ve Got To Hide Your Love Away”. Era o primeiro músico de fora a participar de uma música dos Beatles desde “Love Me Do”, quando Andy White gravou a bateria a pedido de George Martin.
“Eles me disseram mais ou menos o que queriam, ¾ do tempo, e a melhor maneira de atender às suas necessidades era tocar flauta tenor e flauta contralto, a segunda como uma regravação. Pelo que me lembro, os quatro estavam lá e Ringo estava cheio de alegria conjugal; ele acabara de voltar da lua de mel”, contou Scott no livro “The Complete Beatles Recording Sessions”, de Mark Lewisohn.
Mas uma música que realmente deu trabalho foi “Yesterday”, deixada para o último dia de gravação. Um dia, McCartney acordou com essa melodia na cabeça e passou os dois anos seguintes se perguntando e perguntando aos outros se alguém ouviu algo parecido em algum lugar. Gradualmente, a letra foi sendo formada na cabeça e no papel sem ajuda de Lennon, farto de ouvir o amigo falar dessa melodia durante uma parte considerável do tempo. Ao mostrar a música para Bruce Welch, o guitarrista levou um susto. Não era nada bobinho de três acordes e pronto para agradar adolescentes. Era algo maior, com harmonias e uma sofisticação que estava longe de qualquer música dos Beatles até então.
Ao ouvir a música pela primeira vez, George Martin sugeriu o acompanhamento de um quarteto de cordas. Eles organizaram tudo em uma noite e o quarteto de cordas levou três horas para ser gravado, com arranjo de Martin. E, pela primeira vez, um integrante da banda gravou uma música sozinho no estúdio, com os outros três sem qualquer participação. Por isso, o produtor sugeriu lançá-la como single sob o nome de Paul McCartney, mas o empresário Brian Epstein vetou.
“Não era exatamente uma gravação dos Beatles, e eu discuti isso com Brian Epstein: ‘Sabe, esta é uma música do Paul... Vamos colocar o nome de Paul?’ Ele disse: ‘Não, não importa o que façamos, não estamos separando os Beatles’. Então, mesmo que nenhum dos outros tenham aparecido na gravação, ainda eram os Beatles – esse era o lema da época”, explicou Martin no documentário “Anthology”.
Para a foto da capa, Robert Freeman foi chamado mais uma vez e teve a ideia de colocá-los usando as roupas de inverno do filme, com os quatro fazendo as letras NUJV. Nos Estados Unidos, a ordem foi alterada para NVUJ. “Tive a ideia de usar um semáforo para formar as letras HELP. Mas quando chegamos à hora de fotografar, a disposição dos braços com essas letras não ficou boa. Então, decidimos improvisar e acabamos com o melhor posicionamento gráfico dos braços”, contou Freeman.
O álbum foi lançado no Reino Unido em 6 de agosto de 1965, com sete músicas da trilha sonora do filme no lado A e o restante no lado B. Na semana seguinte, desbancou a trilha sonora de “A Noviça Rebelde” para chegar ao primeiro lugar da parada e permaneceu por lá por nove semanas consecutivas. Foram 37 semanas entre os mais vendidos até sair definitivamente. Nos Estados Unidos, como sempre com uma versão diferente do trabalho, 1 milhão de cópias foram encomendadas, o maior pedido da história da indústria fonográfica local até então, que deixou o disco no topo também por nove semanas.
Era o início de grandes mudanças para os Beatles. Um ano antes, eles estreavam na TV americana, no Ed Sullivan Show e entravam para história. Agora, eles estavam perdendo o interesse em canções bobinhas para adolescentes de 15 anos. “Help!” foi o começo de um impulso na exploração do desconhecido, principalmente ao ouvir outros artistas indo por esse caminho. Mas antes disso, eles fariam a apresentação histórica no Shea Stadium para 56 mil fãs enlouquecidos. Seria o último momento do que pode ser chamado de Velho Testamento. Uma nova era estava para começar.
Crítica de “Help!”
O grito de socorro de John Lennon abre “Help!” de maneira muito honesta, apesar de ninguém, nem ele mesmo, ter percebido na época. Estruturalmente, a música segue a simplicidade do rock do início dos anos 1960: um bom refrão, momentos dançantes e algo mais lento até a explosão final. Sem dúvida alguma é um ótimo começo, ainda mais quando a seguinte é “The Night Before”. Escrita primordialmente por Paul McCartney quando ele morava com a namorada, a modelo Jane Asher, usa muito as harmonias vocais para encorpar a faixa.
A influência de Bob Dylan bateu forte em Lennon, que queria explorar mais o abstrato e não ser tão direto nas letras quanto era no início da carreira. “You've Got to Hide Your Love Away” é essa tentativa, ainda que em uma canção de pouco mais de dois minutos, de explorar esse lado visto apenas no diário e nas pinturas. Logo em seguida, George Harrison aparece com a bobinha “I Need You”, ainda muito longe do trabalho em que ficaria conhecido na segunda fase da banda, mas uma tentativa em se equiparar com os companheiros compositores e McCartney entra com a igualmente inocente “Another Girl”, quando ele fez a guitarra solo – algo incomum na época.
“You're Going to Lose That Girl” encaminha o ouvinte para o encerramento do lado A com uma conversa entre duas pessoas ameaçando um ao outro de roubar a namorada. Curiosamente, foi a última música gravada antes das filmagens de “Help” e a primeira em que Ringo Starr, além da bateria, toca bongô. Um dos grandes momentos do disco, “Ticket to Ride” é a primeira canção da banda a ultrapassar três minutos de duração e, estruturalmente, é mais suave e tenta efetivamente contar uma história (“I don't know why she's riding so high/ She ought to think twice, she ought to do right by me/ Before she gets to saying goodbye/ She ought to think twice, she ought to do right by me”).
Para abrir o lado B, Starr chega com o cover de “Act Naturally”, conhecida na voz de Buck Owens. Fã de country desde a adolescência, ele não fez feio ao ser simples na execução e honesto na interpretação, tudo que uma música pede, diferentemente de “It's Only Love”, quando Lennon foi contra, mas acabou sendo convencido por Paul a gravá-la para completar as 14 músicas do disco. E se “You Like Me Too Much” traz a segunda música de Harrison em um LP dos Beatles, algo inédito até então, “Tell Me What You See” é um cumpridor de tabela, boa o suficiente para a segunda parte – palavras de McCartney.
Em resposta a anterior, “I've Just Seen a Face” tem a calibragem certa para ser uma boa música country de bom refrão cantada por um inglês. Mas o arrebatamento mesmo chega com “Yesterday”, música que mudou definitivamente o patamar de McCartney para sempre ao cantar sobre perda de uma maneira muito adulta e melancólica, algo pouco visto na música jovem da época, com um belo arranjo de cordas. Uma verdadeira porrada (“Yesterday/ All my troubles seemed so far away/ Now it looks as though they're here to stay/ Oh, I believe in yesterday”).
Encerrar com “Yesterday” teria sido o ideal, mas, na época, pesou o fato de o público não entender ou não gostar de terminar com uma música tão triste. É aí que entra o cover da animada “Dizzy Miss Lizzy”, de Larry Williams, cantada por Lennon (“You make me dizzy, Miss Lizzy/ The way you rock and roll/ You make me dizzy, Miss Lizzy/ When you do the stroll/ Come on, Miss Lizzy/ Love me before I grow too old”). Seria o último cover gravado por eles em um disco até “Maggie Mae”, em “Let it Be”, de 1970.
“Help!” plantou a semente do que viria nos discos seguintes. Lennon queria brincar mais com as letras, McCartney queria encorpar mais o próprio com algo mais elegante, Harrison começava a querer mais atenção e Starr queria cantar suas músicas sem drama. Ao entrar em uma nova fase da vida, o quarteto mostrava um crescimento que mudaria dramaticamente a forma de ver o público e a música em si. Decisões seriam tomadas, fundamentais para entrar de cabeça na segunda fase.
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Ficha técnica
Tracklist:
Lado A
1 - “Help!” (2:18)
2 - “The Night Before” (2:34)
3 - “You've Got to Hide Your Love Away” (2:09)
4 - “I Need You” (George Harrison) (2:28)
5 - “Another Girl” (2:05)
6 - “You're Going to Lose That Girl” (2:18)
7 - “Ticket to Ride” (3:09)
Lado B
1 - “Act Naturally” (Morrison–Russell) (2:30)
2 - “It's Only Love” (1:56)
3 - “You Like Me Too Much” (Harrison) (2:36)
4 - “Tell Me What You See” (2:37)
5 - “I've Just Seen a Face” (2:05)
6 - “Yesterday” (2:05)
7 - “Dizzy Miss Lizzy” (Larry Williams) (2:54)
Todas as músicas foram escritas por John Lennon e Paul McCartney, exceto as marcadas
Gravadora: Parlophone
Produção: George Martin
Duração: 34 minutos
Estúdio: Abbey Road
John Lennon: vocal, harmonia e vocal de apoio; violão e guitarra; teclado, órgão em “Dizzy Miss Lizzy”; pandeiro em “Tell Me What You See”; caixa em “I Need You”
Paul McCartney: vocal, harmonia e vocal de apoio; baixo, violão e guitarra; piano e teclado
George Harrison: harmonia e vocal de apoio; violão e guitarra; vocal em “I Need You” e “You Like Me Too Much”; güiro em “Tell Me What You See”
Ringo Starr: bateria e percussão; claves em “Tell Me What You See”; vocal em “Act Naturally”
George Martin: piano em “You Like Me Too Much”
John Scott: flauta tenor e alto em “You've Got to Hide Your Love Away”
Tony Gilbert e Sidney Sax: violino
Kenneth Essex: viola
Francisco Gabarro: violoncelo
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